Em recente decisão paradigmática (REsp nº 2.191.259/RS, julgado em 20 de março de 2025), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) enfrentou uma delicada questão que tem desafiado advogados, juízes, consumidores e instituições financeiras desde a entrada em vigor da Lei nº 14.181/2021: o comparecimento do credor à audiência de repactuação de dívidas, sem apresentação de proposta, basta para afastar as sanções do Código de Defesa do Consumidor (CDC)?
A Terceira Turma, por maioria, disse que sim. A seguir, apresentamos uma análise crítica do caso, seu impacto prático e os argumentos centrais que orientaram o julgamento.
A Controvérsia: O Que Se Debateu?
No processo em questão, o consumidor F.S.M. requereu audiência judicial de repactuação de dívidas com base no art. 104-A do CDC, alegando situação de superendividamento. A instituição financeira P.B. S.A. compareceu à audiência com preposto e advogado com poderes para transigir, mas não apresentou proposta de acordo.
O juiz de primeiro grau aplicou, por analogia, as sanções do §2º do art. 104-A do CDC, previstas para credores ausentes ou representados por pessoas sem poderes especiais. O entendimento foi mantido pelo Tribunal de Justiça estadual, que considerou que não propor acordo equivaleria, na prática, à ausência injustificada.
O recurso especial foi interposto pela instituição financeira ao STJ.
A Decisão do STJ: Legalidade, Segurança Jurídica e Limites à Cooperação
O relator, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, conduziu uma análise detalhada da teleologia do processo de superendividamento e do conteúdo literal do CDC. Para ele, a Lei nº 14.181/2021 é clara ao atribuir ao consumidor a obrigação de apresentar uma proposta de pagamento.
O STJ reforçou que o comparecimento à audiência com poderes de transigir cumpre o dever legal imposto ao credor. Não apresentar proposta de acordo não configura falta capaz de justificar as sanções previstas no §2º do art. 104-A do CDC, como:
- Suspensão da exigibilidade do débito;
- Interrupção dos encargos de mora;
- Inclusão compulsória do crédito no plano apresentado pelo devedor.
O voto vencedor afirmou que essas sanções são excepcionais e aplicáveis apenas quando o credor não comparece à audiência ou comparece sem poderes para negociar.
Superendividamento: Um Fenômeno Social com Reflexos Jurídicos
O acórdão reconheceu que o superendividamento é um fenômeno estrutural da sociedade de consumo, e que a repactuação de dívidas deve proteger o mínimo existencial do consumidor, garantir sua reinclusão social e prevenir a insolvência pessoal.
Contudo, isso não significa que o credor perca seu direito de avaliar propostas com cautela, tampouco seja obrigado a apresentar alternativas. Não há dever legal de formular contraproposta. A boa-fé e a cooperação, embora princípios fundamentais, não autorizam analogia punitiva contra condutas não previstas expressamente pela norma.
Segurança Jurídica e Equilíbrio: A Balança do STJ
Ao proteger os direitos do consumidor, o STJ teve o cuidado de preservar o equilíbrio contratual e a segurança jurídica dos credores. Interpretar a ausência de proposta como má-fé ou como se fosse ausência total violaria o princípio da legalidade, base de todo o ordenamento jurídico.
“A norma impõe ao credor apenas o dever de comparecimento com poderes de transação. O oferecimento de proposta é uma faculdade, não uma obrigação legal.”
E Quando Não Há Acordo?
A falta de acordo não encerra o processo. O STJ destacou que, nesta hipótese, abre-se a fase judicial do superendividamento, conforme art. 104-B do CDC. Nessa etapa, o juiz poderá:
- Determinar a revisão dos contratos;
- Reduzir encargos e juros;
- Estabelecer prazos mais amplos para pagamento.
Esse processo judicial pode culminar em repactuação compulsória das dívidas remanescentes, respeitando as possibilidades reais do devedor.
O Juiz e o Poder Geral de Cautela
Outro ponto relevante do julgamento foi a reafirmação do poder geral de cautela do juiz. Caso o devedor demonstre risco iminente ao seu mínimo existencial, o magistrado poderá adotar medidas provisórias, até mesmo de ofício, tais como:
- Suspender a exigibilidade do crédito;
- Interromper a contagem de encargos;
- Incluir o valor devido em plano provisório de pagamento.
Essas medidas são excepcionais e fundamentadas na boa-fé do consumidor e na ausência de abuso pelo credor.
Conclusão: Respeito à Lei e ao Equilíbrio nas Relações de Consumo
A decisão do STJ representa um marco de racionalidade e segurança no tratamento jurídico do superendividamento. Ao afastar a aplicação automática de penalidades a credores que comparecem à audiência sem proposta, o Tribunal reafirma que os princípios da boa-fé e da cooperação não autorizam ampliações analógicas em prejuízo da legalidade e do equilíbrio contratual.
Consumidores continuam protegidos. Credores seguem sujeitos à revisão judicial caso não colaborem. Mas a decisão coloca cada parte dentro de seus limites legais, o que fortalece o sistema como um todo.
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